O Rio de Janeiro segundo Dorival Caymmi

“Peguei um ita no Norte, pra vir pro Rio morar, adeus, meu pai, minha mãe”. A vida imita a arte, e assim canta a música que retrata um pedaço da vida de um dos grandes nomes do nosso samba. Era 4 de abril de 1938, o artista era Dorival Caymmi e o ita, um antigo barco de transporte de passageiros, que comunicava o norte e o sul do Brasil, se chamava Itapé. Dorival, um jovem baiano de 24 anos, partiu de Salvador em direção à Cidade Maravilhosa, para tentar a vida como jornalista e se preparar para o curso de Direito.

Mas não foi bem esse o caminho que a vida seguiu. Com pouca idade e muitos acordes no violão, Caymmi imigrou para o Rio de Janeiro para tentar a sorte. Fez vida, fama e canção na cidade, sem nunca esquecer o amor pela sua Bahia.

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Calçadão de Copacabana, O Rio de Janeiro de Dorival Caymmi

Dorival Caymmi: Os pés no Rio de Janeiro e o coração na Bahia

Hoje, 2 de dezembro, é o Dia Nacional do Samba. Para celebrar, nasce esse post em homenagem a um dos maiores nomes do samba que já viveu no Rio de Janeiro, a terra do samba por excelência.

Caymmi ‘nasceu e se criou com o samba, dele nunca se separou’. Mas o samba de Dorival nunca foi qualquer samba. Um samba escrito no balanço da rede: meio carioca, meio baiano. Um samba único, que ‘deixa a gente mole’, envolvente na medida certa.

O cantor e compositor viveu na Cidade Maravilhosa a maior parte da sua vida. Mas já chegou por aqui com a música no coração. Se tornou parceiro de grandes nomes da música brasileira, como Carmem Miranda e Tom Jobim. Em Jorge Amado, encontrou um amigo pra conversar sobre a Bahia. Com Noel Rosa, estabeleceu as bases do samba-canção. Impossível negar que o Rio de Janeiro deu a Caymmi o sucesso e a fama que ele veio buscar na capital do país, naquele ita que partiu de Salvador em 1938.

Mas Dorival nunca, nem um só dia, esqueceu a terra natal. O cheiro do mar e a brisa de Itapuã foram suas maiores inspirações. As canções praieiras se sucederam na sua discografia, como uma lembrança saudosa das tardes frescas à beira-mar em Salvador… Dorival Caymmi: um homem com os pés no Rio de Janeiro e a cabeça na Bahia.

O Rio de Janeiro segundo Dorival Caymmi: A cidade que o poeta viveu

Dorival Caymmi do centro e da Zona Portuária

Cinelândia noturna, O Rio de Janeiro de Dorival Caymmi
Cinelândia noturna

A vida de Caymmi no Rio de Janeiro começou modesta. Pelas ruas do centro, o menino baiano se virava como podia. Morou em pensões e tentou conseguir emprego na rádio Mayrink Veiga, onde cantavam as estrelas da Era do Rádio. Não conseguiu. Seguiu procurando oportunidades.

Fez pequenos trabalhos para os Diários Associados, um jornal com sede na antiga Zona Portuária da cidade. Um homem que procurava o mar, se alimentava do cheiro da maresia.

No livro O Mar e o Tempo, sua neta Stella conta que Caymmi “costumava andar a noite. Batia a Avenida Rio Branco até a Praça Mauá. ‘Eu ia sentir o cheiro do mar ali na Praça Mauá’ (…) Muitas canções que ele trouxe incompletas da Bahia foram terminadas nas andanças noturnas pelo centro do Rio. O que é que a baiana tem? A preta do Acarajé, O Mar e A Lenda do Abaeté. (…) A Avenida Rio Branco era um deserto só, não oferecia o menor perigo. E o baiano deixava-se andar com seus sonhos e melodia. ‘Sentia uma solidão distraída, vislumbrando de longe a Cinelândia, vazia, perdida na noite‘. (…) Caymmi preferia suas andanças solitárias ao burburinho da Lapa”.

O jovem Caymmi continuava a cantar e compor. Começou a se apresentar, mesmo sem contrato, na Rádio Tupi. A reviravolta começou quando Caymmi encontrou Lamartine Babo e fez uma apresentação no programa Clube dos Fantasmas, na Rádio Nacional.

Cantou Noite de Temporal, sua primeira canção praieira, que tinha uma batida única, diferente de tudo o Rio de Janeiro já tinha visto. Segundo o próprio Caymmi, as batidas do violão buscavam imitar as batidas de um berimbau de capoeira. O Brasil vivia a Era do Rádio e Caymmi ganhou destaque. “O que é que a baiana tem?” foi interpretada por Carmen Miranda e fez parte da trilha sonora do filme Banana da Terra.

A ‘saudade que ele tinha da Bahia’ colocou o sucesso no caminho de Dorival, aqui em terras fluminenses.

Dorival Caymmi do Grajaú

Pelas ruas do Grajaú, Rio de Janeiro - o Rio de Janeiro de Dorival Caymmi
Pelas ruas do Grajaú, Rio de Janeiro

Caymmi conheceu Adelaide Tostes num programa de calouros na Rádio Nacional. Na época, Adelaide adotava o nome artístico de Stella Maris. Os dois se casaram em 1940 e foram morar na Zona Norte do Rio, no Grajaú, um dos tradicionais bairros da Grande Tijuca. Uma região urbana e rica em arte, que recebeu ao longo da sua história outros importantes nomes da nossa música, como Tim Maia e Erasmo Carlos.

Stella abandonou a carreira e no Grajaú nasceram os três filhos do casal: Nana em 1941; Dori em 1943 e Danilo em 1948. Os três nasceram com a música no sangue e seguiram os passos musicais da família.

Grajaú também viu a inspiração de Caymmi cantada em versos. Também de O Mar e o Tempo, lemos que “Um belo dia eu vinha da Mayrink Veiga, no bonde do Grajaú, com Aracy de Almeida, que estava de bom humor, e saltou na Barão de São Francisco. E tinha o Paulo Gracindo, que morava também no Grajaú. O ônibus vazio, a gente mais pra cozinha do ônibus, ela me achou talvez com cara de bobo: ‘Caymmi, eu estou falando com você um negócio e você não está me ouvindo’. Eu tinha achado.

E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra“.

E foi num ônibus do Grajaú que nasceu João Valentão, um samba-canção clássico que conta a vida de Carapeba, um velho amigo da Bahia. Homem rude que quando encontra com a natureza, ‘não precisa dormir pra sonhar’. A primeira vez que Caymmi gravou João Valentão, foi no clássico Teatro Odeon, na Praça da Cinelândia, em 1953. O coração baiano de Caymmi se mistura mais uma vez com a vida carioca de Dorival.

Dorival Caymmi do Leblon e de Copacabana

“Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar, ai”

Copacabana, O Rio de Janeiro de Dorival Caymmi
Copacabana, O Rio de Janeiro de Dorival Caymmi

Caymmi não conseguiu viver muito tempo longe do mar. Primeiro se mudou para o Leblon, que dizem que era seu bairro favorito no Rio. Lá os filhos cresceram e Caymmi compôs uma de suas mais importantes canções, Saudades de Bahia.

Na década de 1950, se mudou para Copacabana, a princesinha do mar. Nessa altura, a vida no Rio de Janeiro já estava tão enraizada em Caymmi que isso começou a transparecer em verso e canção. Sábado em Copacabana mostrava mais uma vez que o amor de Caymmi nascia e crescia à beira-mar. ‘Um bom lugar pra encontrar, pra passear à beira-mar, depois num bar à meia-luz. Copacabana, Eu esperei por essa noite uma semana!“.

Caymmi ficou cada vez mais próximo da comunidade de pescadores de Copacabana, já pertinho do final da praia, ao lado do Forte. Ouvia suas histórias e compunha suas canções. Os pescadores povoavam cada vez mais as canções praieiras de Caymmi, que viveu em Copacabana até sua morte. Faleceu em casa, com a brisa do mar batendo na janela e a saudade da Bahia no coração. Onze dias depois, Stella Maris foi encontrar seu amor em outro cantinho, com certeza perto do mar.

Calçadão de Copacabana, O Rio de Janeiro de Dorival Caymmi
Calçadão de Copacabana

Homenagens a Dorival Caymmi

Primeiro, o Leblon homenageou o cantor, que virou nome de rua no bairro. Uma pequena travessa próxima à Avenida Visconde de Albuquerque. Tranquila, um tanto humilde para o bairro e bastante poética, como era Caymmi.

Copacabana também não ficou atrás e rendeu uma homenagem a Dorival. Em 11 de dezembro de 2008, foi inaugurada uma estátua de Caymmi, com 1,80m e 300 kg, inspirada numa fotografia de Evandro Teixeira. O lugar foi escolhido a dedo: de frente para o mar, perto do posto 6, onde fica a colônia de pescadores de Copacabana. Os pescadores de Copa, assim como os cantados em Suíte do Pescador, seguem proseando com Caymmi à beira-mar

Feliz Dia do Samba, Dorival!

O coração do poeta Caymmi vivia numa ponte aérea emocional entre a Bahia que o criou e o Rio de Janeiro que o projetou para o mundo. Acho que podemos dizer que ‘essa saudade que ele tinha da Bahia’, junto com seu jeito único de fazer samba, foram as maiores causas do seu sucesso.

“O baiano mais carioca que o Rio já teve” viveu 70 anos no Rio de Janeiro. ‘É doce morrer no mar‘ de Dorival Caymmi. Ele será pra sempre lembrado no coração de cariocas, baianos e de todo bom sujeito que gosta de samba.

Nota da autora: A imagem de destaque do post, da estátua de Dorival Caymmi em Copacabana, é de autoria desconhecida. A imagem foi retirada do Pinterest (referência do pin: https://br.pinterest.com/pin/288793394835857494/)

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O Rio de Janeiro segundo Dorival Caymmi
Lila Cassemiro
Klécia Cassemiro (Lila, para os amigos) é fotógrafa, videomaker e editora de conteúdo no blog Fui Ser Viajante. Também é sommelier de cervejas, formada pelo Instituto Science of Beer. Viajante geminiana e curiosa, é especialista em desenhar roteiros fora do óbvio e descobrir os segredos mais bem escondidos de cada destino.
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Comentários:
Anselmo Roberto Marretto disse:

Belíssima matéria!

Ruthia disse:

Querida, li o post da Analuiza e fiquei ansiosa para ler o seu. Adorei esta poesia a quatro mãos, pois as duas têm muita sensibilidade no coração e na escrita. Um dia que passe no Rio (será que voltarei algum dia à cidade maravilhosa?) irei trocar dois dedos de prosa com esse senhor que tinha as marés no coração. Conhecia algumas músicas dele e nem sequer fazia ideia quem era o compositor.
Lindos momentos.
Beijinho

Analuiza disse:

“‘Sentia uma solidão distraída, vislumbrando de longe a Cinelândia, vazia, perdida na noite‘.”

Que saudades desse Rio de Janeiro que não conheci, mas que gostaria de ter visto, vivido. Ah! Quanto encantamento no Rio de Caymmi…

Desde que me entendo por gente, eu conheço a Bahia de Caymmi, mas nunca havia seguidos os seus passos até o Rio. Se eu já tinha amor por esta cidade maravilhosa, agora sabendo por onde Caymmi andou, colocou uma pitadinha de sal carioca em suas músicas com sabor baiano, o Rio ganhou ainda mais colorido.

A história do Rio de muitas maneiras se mistura com a de Caymmi e só mesmo uma alma linda como a sua, Klécia, para me levar com tamanha poesia e doçura pela trajetória desse sambista que sempre fez parte de minha vida. Caymmi é da Bahia, do Rio, é coisa nossa! E da melhor qualidade! 🙂

Saudades da Bahia, no Leblon?! Seu coração ficou mesmo por aqui. 🙂

A Bahia nunca saiu mesmo desse baiano que contou ao mundo este estado e suas nuances. Mas no Rio encontrou o sucesso, amigos e um lindo amor!

Viva o samba! Viva nosso Caymmi! Viva o amor dele e de Stela! E viva toda a poesia deste lindo texto que me pegou pelo pé, coração e alma pelo lindo apaixonante Rio de Caymmi.

Por mais parcerias Bahia – Rio como esta.

Klécia disse:

Oh, Ana! Obrigada pelo carinho e fico imensamente feliz de que tenha achado o texto interessante. É impossível não se envolver na poesia de Caymmi, e eu fiquei bastante insegura se ia conseguir estar à altura da tarefa de escrever sobre esse baiano 🙂
Espero que o texto tenha agradado, e que venham mesmo muitas outras parcerias RJ -BA 🙂